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domingo, 29 de setembro de 2013

Máscaras da violência


A brutal repressão policial contra os professores municipais do Rio de Janeiro, expulsos da Câmara Municipal com uso excessivo da força - incluindo policiais mascarados atacando covardemente e pelas costas cidadãos desarmados, como se pode ver aqui e em vários vídeos do youtube - é mais uma grave violação do Estado de Direito na capital fluminense e suscita graves preocupações quanto ao livre exercício da democracia no estado.

A ação se deu por ordem direta do governador Sérgio Cabral, atendendo a pedido do prefeito Eduardo Paes, ambos do PMDB, principal aliado do PT nos âmbitos estadual e federal. Os professores retomaram a greve no último dia 20, ocupando a Câmara, após terem sido ludibriados pelo Plano de Cargos, Carreira e Remuneração da categoria apresentado pelo prefeito Paes e que, segundo eles, não atende a 93% dos profissionais.

A repressão ao direito constitucional à greve, ainda por cima pacífica, já seria, em si, reprovável, por contrariar a Constituição. Sua execução através de inaceitável abuso policial, que humilha uma classe de profissionais historicamente aviltada, figura-se inaceitável em uma sociedade que se quer democrática. Demanda uma reação urgente da sociedade civil organizada no sentido não só de esclarecer e punir os responsáveis por tal descalabro, mas para cortar na raiz a tendência à repressão inconstitucional e ao excesso de poderio em mãos militares que há tempos se verifica no Rio de Janeiro, agravado sobremaneira com o advento das milícias, com as UPPs e como reação aos protestos de junho.


Repressão periférica
Não se trata no entanto, de um fenômeno anômalo ou recente. A história da cidade do Rio de Janeiro pode ser contada como uma sucessão de processos de reurbanização e reorganização do espaço urbano motivados pela urgência em empurrar os mais pobres para longe das "áreas nobres" da cidade – ou em mantê-los confinados nos morros e subúrbios mais recônditos - e, sob lemas como "progresso", "europeização" e "pacificação", mascarar o apartheid.

Mascarar, no caso, significa forjar uma narrativa positiva e progressista que a um tempo encubra e potencialize a repressão periférica. Esta, em forma de deslocamento ou enclausuramento forçado, assassinato seletivo ou genocídio, repete-se de forma cíclica ao longo da "evolução" da metrópole, de Pessoa de Barros (1889-90) a Eduardo "Milícia" Paes.


A segurança como desculpa
Na administração Pereira Passos (1902-1906), protótipo dessa verdadeira política de "bota-abaixo", tratava-se tanto de um processo de "sanitização"- que varresse dos bairros centrais a herança escravocrata - quanto de uma operação cosmética que transmutasse a fétida cidade portuária na "Paris dos trópicos". Não é possível entender o ânimo popular e a virulência da "Revolta da Vacina" sem levar em conta tal contexto - que pouco aparece nos jornais da época -, assim como não dá para decifrar as motivações das manifestações de junho último (e sua persistência no Rio de Janeiro) sem atentar para a saturação da paciência popular para temas como (i)mobilidade urbana, carestia e marquetização da política, no bojo de um processo de intensificação de predisposições psicológicas coletivas que, uma vez mais, a mídia mostrou-se incapaz de captar e retratar. A novidade é que foi acompanhada, em sua "distração", pelos blogueiros progressistas, há tempos mais interessados no apoio chapa-branca ao governo petista do que em examinar os humores da população com esforço de imparcialidade e desejo verdadeiro de entender .

Essa intermitente política de repressão periférica tende a alcançar picos em períodos em que ao destaque dado ao discurso da "ordem pública" – como na governança de Carlos Lacerda (1960-65), cujos requintes incluíam afogamento sistemático de mendigos – vem a somar-se a alegada primazia dos assuntos de "segurança nacional" - como com o coronel Etchegoyen à frente da polícia durante o Estado Novo ou com prepostos diversos durante a última ditadura militar, cujo legado maior em relação ao Rio talvez tenha sido, com a ativa colaboração de seu braço midiático, a Rede Globo, a consolidação da imagem do Rio como uma terra de ninguém ultraviolenta sitiada pelo tráfico, a "cidade partida" de que nos fala Zuenir Ventura.


Visão pessoal
A transformação da "Cidade Maravilhosa" em "Cidade Partida" foi um processo longo e doloroso, que acabou por afetar tanto a imagem exterior do Rio, provocando o temor e eventualmente o deboche dos seus vizinhos brasileiros, quanto a autoestima do carioca. Morei no Rio entre 1996 e 2005, quando tal fenômeno atingiu seu auge. Eu adorava a cidade - que me parecia bela, convidativa, sensual, culturalmente mais vibrante (ainda que menos diversificada) que São Paulo – e seus habitantes – que, em sua maioria, me receberam com uma gentileza e um carinho que renovadas vezes me surpreenderam e me emocionam. Mas o abatimento no ânimo carioca era visível, indisfarçável: mesmo pessoas que jamais haviam sido assaltadas ou sofrido qualquer violência física mostravam-se acuadas e amedrontadas.

Para além do esmero da Globo em manter a população presa a um estado permanente de temor e tensão – muito lucrativo politicamente -, outros dois fatores parecem ter contribuído bastante para tal estado de espírito: a sombra do passado glorioso da Guanabara, a mundialmente celebrada capital federal, berço da bossa nova e da garota de Ipanema, e a certeza de que aquela cidade, real ou alegadamente sitiada, não estava à altura de sua beleza, de sua pujança, de seu destino, de suas potencialidades.



A aposta na repressão
A soma de tal atmosfera com a baixa autoestima da população propiciou o clima ideal para a adoção sucessiva de medidas truculentas e de soluções repressivas, até chegarmos ao estado atual, em que manifestações públicas são não apenas rotineiramente reprimidas, mas reprimidas com uso excessivo – e gratuito - de força policial. Primeiro veio o endurecimento da legislação concernente ao delito de associação ao tráfico, cuja tentativa de transformá-lo genericamente em "crime hediondo" foi diretamente motivada pela "necessidade" de impedir protestos de habitantes dos morros e de comunidades pobres contra a violência policial indiscriminada – os quais eventualmente interrompiam o trânsito, inclusive na sacrossanta Zona Sul (Cantagalo e Pavão-Pavãozinho), revoltados pelo assassinato de crianças que não pertenceriam ao tráfico de drogas, ao contrário do que afirmavam as forças policiais. (O que, por sua vez, deixa clara a institucionalização da ideia de que, se pertencessem, deveriam ser mortos - ao invés de submetidos ao devido rito judicial demandado pela democracia.)

E isso se deu em uma época e que a violência, para além de sua efetividade social, tornou-se, por excelência, a pauta de políticos populistas e de demagogos televisivos, gerando uma visão distorcida da relação entre criminalidade, violência e Direitos Humanos, em que prevalece, de forma quase exclusiva, a ótica punitiva e negativista. Derivam daí os protestos pouco inteligentes que confundem os Direitos Humanos com o que chamam de "direitos de bandido", numa generalização que se baseia em uma confiança irrestrita na distinção ontológica entre "gente de bem" e bandidos, a qual não leva em conta que tal distinção depende, quase sempre e em primeira instância, dos critérios subjetivos de policiais mal pagos e mal treinados – muitas vezes corruptos –, atuando em uma corporação de racismo e classismo entranhados e para uma sociedade em que tais ismos são também correntes, de forma notória, entre as elites políticas e jurídicas que, respectivamente, fazem as leis e julgam os acusados.



UPP, essas esfinge
Nesse cenário, as UPPs surgiram como uma panaceia. Pouco importa que, como demonstra a cientista política Maria Helena Moreira Alves, elas se constituam em ocupações militares que incorporam e significam um estado de exceção que viola sistematicamente a ordem democrática: a sociedade estava disposta a saber que os barracos de seus subalternos seriam arrombados no meio da noite, ou que os filhos de suas domésticas seriam mortos sob a desculpa de pertencerem ao tráfico, desde que recuperasse a autoestima perdida e o prazer de frequentar um boteco no alto do Chapéu-Mangueira.

Assim, mesmo quando as denúncias já se multiplicavam e o modelo das UPPs começava a evidenciar-se como um grande negócio entre poder público, mídia e mercado só possibilitado pela violação rotineira do pacto democrático, o udenismo enraizado no Rio de Janeiro – inclusive entre os setores de centro-esquerda, que apoiaram entusiasticamente as UPPS – preferiu fazer-se de desentendido. Afinal, como observou um taxista, com malícia de filósofo popular e referindo-se ao noticiário de que até o tráfico de drogas persiste, agora com com novas caras, "pelo menos saíram aqueles moleques maltrapilhos e entrou um pessoal fardado. A aparência fica melhor".



A lógica da proibição
O debate recente sobre a cômica proibição do uso de máscaras em eventos públicos relaciona-se diretamente com essa lógica. Ela evidencia a primazia dos critérios racistas e classistas em nossa sociedade – não apenas para as forças policiais, que frequentemente dão mostras de se basearem em tais critérios -, mas da própria sociedade: um dos (falsos) argumentos mais recorrentes entre os governistas que se apressaram em criticar as manifestações de junho foi que seria um ato de classe média, "coxinha": - "Basta olhar as fotos", diziam (num afirmação cujo sentido último é "basta ver a porcentagem de negros e mulatos entre os manifestantes").

Não obstante essas constatações acerca do quão pervasivos são o racismo e o classismo entre nós, é perfeitamente cabível debater se é oportuno ou recomendável o uso de máscara e o apelo à violência nas manifestações, debate que está longe de chegar a um consenso, contrapondo quem defenda a validade de qualquer método de luta política e os que temem que tais usos possam semear a discórdia interna e a antipatia do público - além dos defensores de uma série de posições intermediárias. Mas não se pode "apontar o dedo para aqueles que estão mascarados e esquecer que os protestos foram marcados pela violência do Estado, da violência da policial que, esta sim, em função pública e com boa parte de seu efetivo sem a devida e obrigatória identificação", como apontou o cientista político Walter Hupsel, em seu alerta sobre a criminalização dos protestos. Por fim, não pode ser aceito em uma democracia que o Estado determine, de forma autocrática e unilateral, os rumos dessa discussão, e o faça através de uma proibição contrária à Constituição e que atenta contra os direitos fundamentais da cidadania.



Luta por território
Tudo somado, é preciso ter claro que o grau desproporcional de repressão policial aplicada contra os manifestantes no Rio de janeiro, desde junho, não é "apenas" a decorrência dessa militarização da vida pública, da irresponsabilidade dos governantes ou dos resquícios ditatoriais das forças policiais: ela vem imbuída de um sentimento de vingança pelo fato de os manifestantes terem posto a nu, nacionalmente, a falácia das UPPs – notadamente através do caso Amarildo, que se tornou icônico. Portanto, para além do que revela de despreparo e de certeza de impunidade por parte das forças policiais, evidencia o papel preponderante que estas desempenham em tal esquema, direta ou indiretamente, lícita ou ilicitamente, em público ou em privado. Trata-se um ovo da serpente, de uma militarização do Estado, transferência de poder da esfera civil para a arena militar.

Maria Helena Moreira Alves, em seu livro e em suas entrevistas, alerta para o perigo de que o estado de exceção das UPPs, com sua sistematização da repressão periférica – a qual, naturalmente, a cientista política abomina – contamine o restante do tecido social, a começar da classe média. Na noite de ontem, a máscara de sangue no rosto de alguns professores foi a evidência de que tal contágio saiu do período de encubação e se dissemina. Cabe aos democratas estancá-lo.

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