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domingo, 12 de maio de 2013

O falso debate sobre os médicos cubanos

O anúncio de que o governo Dilma deve trazer seis mil médicos cubanos para atuarem nas regiões Norte e Nordeste, feito pelo ministro Antonio Patriota (Relações Exteriores), tem causado fortes reações, tanto dos que apoiam a medida quanto dos que a rejeitam, num embate em que o peso das paixões ideológicas - sempre abrasivas quando envolvem Cuba – com frequência se sobrepõe à reflexão criteriosa.

Assim, no bojo da repercussão do anúncio de tais medidas, ao invés de um debate de facto sobre o atual quadro geoeconômico da medicina no país, assistiu-se, por um lado, a manifestações pobres em fatos mas ricas em preconceitos contra o regime cubano e de inverdades contra seu mundialmente reconhecido sistema de saúde; e, de outro, a um esforço para impugnar o protesto de associações de médicos como "virulenta reação" de uma "elite corporativista", numa demonstração de que a desqualificação, tática-mór do jornalismo neocon, faz escola no debate público brasileiro, inclusive entre contendores que se apresentam como progressistas.



Narrativa reduciomista
Tais discussões exemplificam um processo que vem ocorrendo com uma frequência preocupante no Brasil em relação ao debate de dilemas específicos da área social: ao invés de se refletir acerca de soluções efetivas, que levem em conta a concretude do problema em seus diversos aspectos e procurem atender, na medida do possível, as demandas de todos os atores sociais envolvidos, cria-se uma narrativa maniqueísta e fortemente idealizada que, ignorando a complexidade de nosso atual quadro social, tende, por alguns, a desqualificar a priori qualquer iniciativa que não se amolde ao figurino do capitalismo neoliberal vigente no último quarto de século; e, por outros, a opor uma elite insensível e malvada ao resto da população, acrescentando a crença ingênua de que o governo petista sempre ao lado desta se coloca, com medidas invariavelmente corretas. O dogmatismo se sobrepondo à razão.

A polêmica sobre a vinda dos médicos cubanos é exemplar nesse sentido. Ante os protestos suscitados pelo anúncio da medida, criou-se uma contra-narrativa que apela para uma generalização desmedida a qual tem tipificado os médicos – tanto as dezenas de milhares de profissionais anônimos que se recusam a ir trabalhar no Norte/Nordeste, quanto os que se declaram contrários à vinda dos cubanos – como uma elite preconceituosa e socialmente insensível, a qual a vinda redentora dos idealistas e generosos médicos cubanos viria vingar.

Na internet e nas redes sociais, os fanáticos e ingênuos de plantão, que se apresentam como pertencentes à esquerda, difundem essa falácia diuturnamente, fingindo desconhecer que a situação dos médicos brasileiros, em sua ampla maioria, é bem outra, submetidos a cursos universitários de qualidade duvidosa e a um sistema de saúde que, tanto em sua versão estatal quanto privatizada, os remunera mal e oferece péssimas condições de trabalho, além de virtualmente nenhum estímulo à necessária atualização em um campo do conhecimento que se renova constantemente, com novas descobertas científicas e novos métodos e processos de cura.



Problema crônico
O Norte e Nordeste brasileiro apresentam uma grande carência na área de saúde, com um déficit de médicos e demais profissionais, em relação ao Sul/Sudeste (que concentra 70% dos doutores), em dimensões ainda mais pronunciadas do que as históricas assimetrias sócio-econômicas entre tais regiões, as quais vêm sendo reduzidas em ritmo acelerado na última década. Enquanto o Distrito Federal apresenta uma média de 4,02 médicos por mil habitantes – seguida de 3,57 em São Paulo e 2,58 no Rio de Janeiro -, em alguns estados da Amazônia Legal há um médico para cerca de 1200 habitantes.

A dificuldade para atrair médicos para essas regiões é um problema antigo e que se tem mostrado infeso às tímidas medidas até agora tomadas para combatê-lo. Ela se origina já no estágio de formação do futuro profissional, visto que pesquisas demostram uma clara tendência do  recém-formado em fixar-se em áreas próximas às quais cursou a faculdade. Se vontade política houvesse e a intenção fosse realmente trabalhar para resolver a questão , esse mal de origem poderia ser combatido pelo governo com relativa facilidade, com o MEC coibindo a concentração excessiva de cursos de Medicina no Sul/Sudeste e os oferecendo em maior número nas regiões carentes de profissionais, diretamente através das universidades federais ou de forma indireta, estimulando sua oferta através do ProUni. Atualmente, os cursos de medicina desovam todo ano 13 mil novos profissionais, dos quais menos de 3000 vão trabalhar nos estados com carência de profissionais de saúde.



Modelo híbrido
A essa questão formativa somam-se fatores estruturais, tais como a lógica mercantilista e classista que caracteriza o modelo de saúde brasileiro, mezzo público, mezzo privado; o atraso estrutural da economia do Norte/Nordeste, o qual acaba por gerar problemas eventualmente graves, que vão de falta de saneamento básico a maior dificuldade de acesso a educação e bens culturais; além dos efeitos do arraigado preconceito contra tais regiões no Sul e Sudeste, o qual tende a perpetuar uma visão anacrônica que amplifica aspectos negativos e subestima potencialidades.

Independentemente do mérito acerca da vinda dos médicos cubanos, o certo é que, por sua própria natureza transitória, ela não se apresenta como uma solução – ou sequer um encaminhamento de solução – para o caso, e sim como um mero paliativo, destinado a durar alguns meses e a gerar algum dividendo eleitoral, antes que a situação da saúde no Norte e Nordeste volte a apresentar os crônicos problemas de sempre, cuja solução o atual governo federal se comprometera a encaminhar à época das eleições, antes que o ministério da Saúde passasse a oscilar, esquizofrenicamente, entre o fortalecimento do SUS, a privatização do sistema ou a improvisação emergencial que ora ameaça se tornar a regra.



Ameaça aos direitos trabalhistas
Porém, em termos trabalhistas, o precedente que a vinda dos médicos cubanos abre é perigosíssimo. Se a moda pega, o governo – este ou os que virão, eventualmente ainda mais conservadores - pode vir a resolver importar contingentes de trabalhadores estrangeiros a cada crise setorial, o que representaria uma séria ameaça aos direitos trabalhistas, aos sindicatos, ao poder reivindicatório dos trabalhadores e ao recurso legal à greve como forma de pressão.

Assim, a repercussão do caso dos médicos cubanos evidencia o altamente contraditório apoio que tantos que se dizem de esquerda têm dado a uma medida que é, na essência, profundamente antissindical e contrária aos direitos trabalhistas - no caso, de uma classe que, embora goze de algum status e prestígio social, está muito longe, no Brasil, de receber o devido reconhecimento, seja em termos salariais ou de condições de trabalho. É certo que chegamos em um ponto da história política brasileira que muitos que se dizem de esquerda apoiam prvatizações e medidas antitrabalhistas, mas imaginemos qual seria a reação desses mesmos setores que hoje saúdam entusiasticamente a chegada dos médicos cubanos se, no futuro, um governo conservador acabar com uma mobilização de professores federais trazendo seus pares angolanos, moçambicanos ou portugueses. Ou se, ante a carência de engenheiros em determinadas regiões do país, o governo importar em massa profissionais de países capitalistas em crise.

Além disso, é preciso atentar para um paradoxo tão curioso quanto nocivo: o fato de que o governo brasileiro está, na prática, se valendo da situação anômala a qual, graças em grande parte a um criminoso boicote ditado pelos EUA, foi submetida a economia cubana  – em que os salários dos trabalhadores são simbólicos, se comparados aos padrões internacionais, sendo complementados por cotas de alimentos e de roupas e pelo acesso a um sistema de educação e de saúde de bom nível – para suprir um problema geoeconômico de um país capitalista. Problema este agravado pelo misto de falta de vontade política e incompetência gerencial  de um governo profundamente identificado com o consumismo capitalista, o qual tem estimulado ao máximo, no altar do desenvolvimentismo a todo custo, à revelia de ponderações écológicas, éticas ou sociológicas.



Com a palavra, o ministro
Ante a forte reação contrária que a proposta suscitou entre a comunidade médica e na mídia, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, fez divulgar nota afirmando que, para além da vinda dos médicos cubanos, o governo "continua analisando" medidas para a questão e formas de reverter a distribuição assimétrica de profissionais de saúde no Norte/Nordeste em relação às demais regiões do país.

Ora, o PT está no governo federal há mais de dez anos, não pode mais agir como um neófito em fase de reconhecimento do terreno. Teve tempo mais do que suficiente para analisar em detalhe um problema estrutural antigo como o da distribuição de médicos no território nacional, apresentar propostas e implementá-las. No entanto, além de não mover uma palha para reconfigurar o panorama do ensino de medicina no país, prefere, como tem feito em outras áreas, adotar a medida mais fácil e menos custosa - mesmo porque temporária e meramente profilática -, ao invés de buscar encaminhar um conjunto de decisões que vise solucionar efetivamente o problema, o que necessariamente exigiria mais investimento, mais tempo e mais supervisão, e não ofereceria as facilidades marqueteiras que a trupe de médicos em forma de anunciada panaceia proporciona.

Infelizmente, o adesismo cego tem feito com que blogueiros e colunistas simpáticos ao governo - e lenientes com a recusa deste em promover os avanços para os quais fora eleito - comprem acriticamente tais estratégias eleitoreiras e as corroborem, seja difundindo-as, seja procurando desqualificar os que as criticam, num processo inverso mas idêntico ao que acusam a mídia corporativa de fazer contra o governo.


(Desenho retirado daqui)




Um comentário:

Unknown disse...

Por que resolver problemas, se conseguimos mais dividendos em lobbies, tráficos de influência e falcatruas? A abstração do debate, sem expor razões, leva ao descrédito, à letargia. É um problema grave, e o fato de o governo se vangloriar de estar aípor 10 anos, inerte, não é um troféu que se queira levar pra "casa" e colocar na estante. A miopia (ou cinismo mesmo) dá nojo. A imobilidade, pena.